quinta-feira, 31 de outubro de 2013

"Mãe o que é um escândalo?", perguntava o menino que ia no banco à minha frente, no metro. "Um escândalo, filho? Como te vou explicar o que é isso?"
E eu saí na minha paragem e fiquei a pensar na explicação que aquela mãe encontraria para satisfazer a curiosidade infantil. Dir-lhe-ia que um escândalo é algo que foge ao normal? Não me parece... O normal é, por vezes, tão escandaloso que acho difícil que o pequenito percebesse... Dir-lhe-ia que um escândalo é algo que nos pode prejudicar? Será? Dir-lhe-ia que um escândalo pode mudar a nossa vida? Afastar-nos dos que gostamos? Fiquei com pena daquela mãe, pelo exercício mental que teria de fazer no final de um dia tão quente... Lembrei-me de mim em situações semelhantes e da forma como conseguia sair delas, muitas vezes com alguma dificuldade, confesso... E, de novo, me convenço que estive sempre certa - os filhos fazem mesmo com que nos excedamos a nós próprios, e isso é precioso e imperdível!

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Da mesa ao lado chegam vozes femininas por entre os meus pensamentos. A conversa, interrompida por gargalhadas juvenis, fala sobre uma despedida de solteira que irá acontecer na próxima semana. E nos projectos que chegarão com o casamento. E numa vida a dois dentro de uma casa nova recheada com móveis e louças, candeeiros e quadros, carpetes e electrodomésticos, tudo comprado com o dinheiro e o gosto dos pais da noiva. E em promessas de emprego garantido para o noivo na clínica dentária do papá. E na viagem de núpcias. E no vestido. E no copo-de-água. 
Com tudo isto, o meu pensamento desviou-se da simplicidade do meu dia-a-dia e ficou, também ele, dentro daquela casa pronta a habitar, mesmo no meio do hall entre espelhos e cristais... 
De repente as gargalhadas deram lugar ao silêncio quando se falou no amor. Quando uma das presentes perguntou à noiva onde se tinham conhecido, onde tinha nascido este amor tão súbito, já que ninguém do grupo conhecia o rapaz. Foram colegas de faculdade numa outra cidade, estudavam juntos todos os dias, respondi eu em vez dela, em pensamento... não, interrompeu a noiva cheia de certezas, tinham-se conhecido através do facebook e namoravam há uns longos três meses. O meu pensamento parou ali... recusou-se a acompanhar aquela aventura inconsciente, apadrinhada pelos pais da noiva que mais pareciam querer comprar a felicidade e o futuro da filha. Que menina infeliz, pensei eu... que família estranha e acomodada, que não questiona as coisas, certamente com medo de ouvir uma resposta... 
Levantei-me e fui pagar o meu chá ao balcão. No caminho para casa dei comigo a pensar em outras conversas, em outras esplanadas, já sem gargalhadas, procurando descobrir diferenças onde nunca existiram semelhanças...

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Gosto do que vejo à minha frente quando abro os olhos. Gosto de quase tudo que deixei para trás, quando fecho os olhos e vejo o percurso feito. Gosto do que tenho apesar de saber que nada me pertence, a não ser a ilusão de que tudo é meu. Gosto do que sinto, por dentro e por fora. Gosto do que faço, mesmo quando parece que não faço nada e apenas penso. Gosto da solidão que me dá paz e me permite reflectir no ontem e projectar o depois. Gosto de ouvir histórias de amor. Gosto de viver a minha história sobre o amor. Gosto do que tenho à minha frente, quando fecho os olhos e vejo o resto do meu caminho.
Tenho saudades de quando as férias eram passadas a três. De quando as minhas mãos seguravam as vossas, sem espaço para outras mãos. De quando as sestas se faziam na minha cama, onde sempre cabiamos todas. De vos contar uma historia. De vos ver dormir. De quando os passeios de bicicleta eram do tamanho que o meu olhar podia acompanhar. Das viagens, a três, convosco a dormir no banco de trás. ...Ou com uma acordada a falar comigo, com medo que eu adormecesse. Tenho saudades de vos ouvir cantar. De vos ouvir perguntar muitas vezes "mãe, quando é que chegamos?" Tenho saudades de dias compridos sem tempo para nada, tantas eram as coisas que queríamos fazer. Tenho saudades da praia convosco. De espalhar o protector solar nos vossos corpos. De sacudiir a areia das toalhas. Dos risos. Dos salpicos das ondas, à beira-mar. Das descobertas. Das surpresas. De ter de voltar atrás para buscar a mochila. Dos amuos. Do "oh mãe, olha ela..." Tenho saudades dos dias seguros, tranquilos, que eu desenhava a três. Tenho saudades do que deixámos por fazer, a três...

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Tenho para mim que não há dois amores iguais. Há amores que nos pertencem mesmo antes de serem nossos e que duram muito para além do seu final. Há amores que são tão intensos que nos fazem sair de nós e flutuar por ai. Há amores que nos amam de uma forma desinteressada e sem exigir nada em troca. Há amores que nos dão tudo e nos pedem o dobro. Há outros que pedem tudo e não têm nada para nos dar. Há amores que são assim, que nos deixam marcas e nos fazem crescer. Há amores que são como as amendoeiras em flor, modificam a paisagem em que vivemos, trazem cor e luz para a nossa vida. Há outros que são pesados e cinzentos como as nuvens antes de uma chuvada; esses, quando acabam, não deixam em nós a sensação de ar fresco nem o cheiro de terra molhada. Há amores que nos fazem felizes. Que nos lavam a alma. Que nos fazem soltar gargalhadas. Que nos fazem ver tudo cor-de-rosa. E há os outros, os que nos partem o coração...
Tenho para mim que o amor é uma ocupação de 24 horas. E que quando o encontramos, se por ventura o encontrarmos, o devemos tratar com muito cuidado, não vá ele partir-se e perder-nos para sempre...
Nestes últimos anos, a vida tem-me surpreendido de uma forma muito especial. Tenho vivido experiências e momentos únicos e irrepetíveis, que me têm ajudado a perceber o meu lugar neste "puzzle" que é a vida e a importância que cada peça tem (ou não!) na mesma.
Experimentei ser mãe de duas filhas fantásticas que aprenderam comigo (e eu com elas!) a importância dos afectos... e de tudo o que tenho sido na vida foi, sem duvida, o que mais gostei!
Experimentei ser filha, neta, irmã, amiga, namorada, mulher, enfim... tantos personagens que nem sempre consegui "vestir" da melhor forma, confesso, mas que, de cada uma das vezes que o fiz tentei dar o meu melhor.
Experimentei ser saudável (ou supor ser...) e em menos de duas horas estar "no outro lado"... e voltar para este, uns dias depois... e a partir desse momento, tudo passar a ter um valor diferente na minha vida.
Experimentei a dor da saudade, experimentei a ausência e as saudades, percebi que a expressão "nunca mais" pode também significar "um dia destes..."
Experimentei ser boa aluna (verdade seja dita, de "quadro de honra" na escola primária!), fazer todo o meu percurso sem perder tempo ou olhar para trás.
Experimentei, também, levantar-me cedo para trabalhar durante os últimos 28 anos, desde sempre com mérito reconhecido por todos os que comigo conviveram e, de repente, ficar sem ocupação, sem emprego, sem "futuro"... e ainda não conseguir perceber porquê!!!
Experimentei, ainda, o voluntariado em saúde, numa altura em que o meu tempo livre passou a ser maior e eu não querer desperdiçá-lo. Os últimos dois anos e meio têm sido imensos em emoção, partilha, afectos, aprendizagem... e continuo a achar que não sei ainda nada...
Uma das minhas máximas de vida diz "deixa que a vida te aconteça; acredita, ela está sempre certa!".
Talvez por isso, eu não perca nunca muito tempo a questionar o porquê das coisas acontecerem... junto as peças, levanto-me a sigo em frente.  Tem sido assim sempre, será assim agora, uma vez mais!
E acredito que só pode ser bom o que vem a seguir!

domingo, 27 de outubro de 2013

As aldeias de Deus...
 
De cada vez que me acontece voltar à infância, uma das memórias que sempre tenho é aquilo a que chamávamos brincar "às aldeias". Eu e a minha irmã Lena, um ano mais nova que eu, passávamos horas a fazer desenhos de pessoas, casas, carros, árvores, etc, que depois disponhamos em cima das nossas camas como se de uma verdadeira cidade se tratasse. Não faltava a igreja da Polana, a piscina do Clube Militar, a Mac-Mahon, o Liceu Salazar, o hospital, as principais ruas de LM, as palhotas ou o aeroporto... Eu, que nunca tive jeito para desenho, fazia os edifícios e os carros e deixava para ela os pais, os filhos, os avós e um ou outro artista de cinema ou da canção que nos tivesse "apaixonado". É verdade, também tínhamos concursos de misses e as habituais matinés de cinema ao domingo à tarde. As historias, essas, ficavam ao critério de cada uma, com finais felizes ou nem por isso, mas sempre apaixonantes... não me lembro de alguma vez termos desenhado prisões ou cemitérios, mas recordo que no hospital só aconteciam nascimentos...
De cada vez que volto à infância uma das memórias mais felizes que tenho é do tempo em que fazíamos de conta que éramos Deus... a vida de todas aquelas "pessoas" estava nas nossas mãos e todos eram felizes, com saúde, amigos, trabalho, dinheiro e, sobretudo, muita segurança.
Agora que já sou mais crescida, percebo que tivemos mais facilidades - de cada vez que não ficava bem à primeira voltávamos a desenhar de novo.  Porque será que a Deus não foi dada essa hipótese? Se pudesse de novo "brincar as aldeias" juro que Lhe daria muito mais que sete dias para criar o universo... e como naquele tempo não havia ainda computadores com a tecla "delete" dava-lhe um pau de giz colorido e um apagador, não fosse ele precisar...

sábado, 26 de outubro de 2013

Às vezes voltam-me as recordações da infancia. Da minha e da delas. Que se misturam, por vezes...
Às vezes chegam-me as imagens dessas memorias. Algumas coloridas e com som. Outras, a preto e branco.

Lembro-me de um Pai Natal vermelho, enorme, insuflável, deitado no sofá de três lugares da sala, na Beira, em Moçambique. E nós os quatro (éramos quatro, ainda...) a descer as escadas com uma mistura de susto e de admiração. 
Lembro de um Pai Natal vermelho, pequeno, em feltro, pendurado na porta do armário da sala, em Lisboa, com um calendário no corpo onde se iam marcando os dias. E elas as duas (sempre as duas), a descontar os dias que faltavam para abrir as prendas que adivinhavam na árvore.
Lembro-me de tardes na piscina do Clube Militar em Lourenço Marques, lembro-me de dias inteiros com elas, em outras piscinas, com o mesmo sabor...
Por vezes apetece-me pegar nelas, hoje, e viajar no tempo até esses dias que vivem na minha memória. Ou conseguir tirar uma fotografia a essas lembranças para lhes poder mostrar.
Por vezes apetece-me parar o tempo e ficarmos todas da mesma idade, eu e elas, a misturar as memórias que guardámos dos dias lá atrás...
Porque sim!
Gosto de ti porque sim! Porque dizes que somos almas-gémeas, porque lês os meus pensamentos, porque me compreendes antes mesmo de eu falar, porque respiras ao mesmo ritmo que eu, porque vives na minha cabeça e no meu coração, porque deste corpo à minha crença de que o amor é uma ocupação de 24 horas...
Porque sim. Porque guardaste o nosso ontem com carinho e não o deitaste fora, porque, tal como eu, vives este presente como quem recebe uma prenda todos os dias, porque, também tal como eu, olhas para o amanha e nos imaginas assim...
Ainda porque sim. Porque me fazes sorrir, porque me emocionas, porque me fazes sentir que as lágrimas também podem ser doces...
Gosto de ti porque sim. Gosto de ti porque gosto de mim e gosto, sobretudo, de gostar de nós os dois juntos. (nesta vida e em todas as próximas que hão-de vir, fica combinado!)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Diário de uma Voluntária 30/07/2013
 
Hoje foi o dia das despedidas. E dos regressos. E dos acabados de chegar.
Hoje foi o dia de muitas emoções. De novas aprendizagens. Da revisão da matéria dada.
Hoje foi o dia da despedida da Rosário. Uma das auxiliares mais simpáticas que conheci desde o meu primeiro dia no HSM, uma mulher com uma disponibilidade e uma paciência invulgar. Vai-se reformar, depois de mais de quarenta anos de
um trabalho pesado e nem sempre bem remunerado. Fica a recordação da forma carinhosa como me recebia, nas tardes em que o seu turno coincidia com o meu, fica a lembrança da alegria com que nos contava quando, sempre no mês de junho, fazia parte da marcha de Carnide, nas festas de Lisboa. Estava feliz e com muitos planos para o resto dos seus dias. Desejei-lhe saúde, sorte e, sobretudo, disse-lhe que não deixasse de me falar, se me visse por aí...
Hoje foi o dia do regresso do Sr João. Pela enésima vez voltou à consulta e ficou, uma vez mais, internado. Recebi-o com o sorriso de quem revê um amigo, brinquei com ele, disse-lhe que "não sabia como matar as saudades e, por isso, voltava". Estava triste e cabisbaixo e, pior do que isso, descrente das melhoras que lhe desejei...
Hoje foi o dia em que conheci a D Amélia. Acabada de chegar, vai ser operada amanha e está cheia de esperança. Contou-me que já é o terceiro hospital por onde passa e, encolhendo os ombros, disse-me que ainda não conhecia o HSM. Falou-me da sua doença, precisava urgentemente de contar a alguém que a ouvisse. Desejei que tudo corresse bem e que depois de amanhã, quando eu voltasse, já falassemos de tudo num tempo passado...
Hoje foi o dia de muitas emoções. O Sr Fernando, na casa dos 80, elogiou o meu carinho e dedicação. Disse que valia a pena estar ali, só para ser ajudado por uma voluntária tão simpática. Disse-me, com os olhos azuis a brilhar, que hoje tinha estado a matar saudades da mulher, que já não via há dois dias. Desejei que ficasse bem depressa para que as saudades não tivessem mais que fazer parte do resto dos seus dias...
Hoje foi o dia de novas aprendizagens. Percebi que as nossas mãos e os nossos pés só nos transportam se nós quisermos - quando não, existem umas asas invisíveis que consegui ver nos ombros do Sr Vitor e que nos levam por aí. Ele ali estava, sentado na cama, com as mãos ligadas de uma operação recente e amputado numa das pernas, mas conversou comigo como se me acompanhasse em passeios virtuais. Desejei que a dor fantasma que sentia, na perna que já não tinha, fosse, também ela, amputada para sempre...
Hoje foi o dia da revisão da matéria-dada. De facto, o mais importante, o que me move, são mesmo os afectos. E todas estas experiências que me fazem valorizar a vida, cada dia mais!
Diário de uma Voluntária (23/07/2013)
 
Assim não vale! Chegar lá, perguntar por um nome e dizerem que já não está, que desistiu, não pode ser.
Cada vez mais acredito que devíamos ter um prazo de validade ao nascer. Devíamos poder saber o número de anos e de dias que podíamos viver e orientar a nossa vida de acordo com esse prazo. Do género empréstimo bancário, a x anos e um dia, sendo que esse dia seria usado para nos despedirmos d
o que mais gostamos. No resto do tempo, seriamos donos e senhores de fazer o que bem entendêssemos, sem ter de deixar para os filhos o encargo de concluir as nossas tarefas.
Doenças que terminam de forma inesperada com a vida ou que nos deixam prostrados numa cama à espera que outros vivam no nosso corpo por nós, nas necessidades mais básicas, não se aceitam... De todo! Não é justo não ter tempo de voltar a casa, arrumar o que ficou fora do sítio, deixar feita a revisão do carro, ir conhecer aquele restaurante de que se fala, ter a conversa que andamos a adiar com o nosso filho, etc, etc... Não é justo, não me parece nada bem... Tudo seria feito com calma se soubéssemos o tempo que teríamos o nosso dispor. De que serve viver na expectativa e fazer planos se, de repente, tudo pode ficar assim, no vazio? E que culpa têm os outros, coitados, que, para além de ficarem sem nós, ainda ficam com uma mão-cheia de coisas inacabadas? Não está certo... Sei do que falo, já saí de casa uma manhã e voltei duas semanas depois, sem planear... Tenho a certeza que a vida seria bem mais apreciada se assim fosse. (como uma taça de gelado que saboreamos até ao fim e não gostamos menos por saber quando esse fim chega)
Hoje ao chegar, perguntei pela D Elisabete. Disseram-me que já não estava, que tinha desistido. Não sei se se apercebeu de ter desistido, a única coisa com que comunicava, os olhos, enchiam-se de lagrimas de vez em quando... fiquei triste, muito triste, mesmo...
Assim não vale!
Diário de uma Voluntária 18/07/2013
 
É tão fácil ser útil quando queremos. É tão importante ocupar o tempo em coisas necessárias e simples que podem marcar a diferença e ajudar quem precisa. Tão simples como chegar um copo de água, empurrar uma cadeirinha de rodas, levar uma colher à boca... tão simples como contar uma novidade acabada de ouvir no radio do carro, dar os bons-dias com gosto, rir com os disparates que dizem no programa da tv... ou tão insignificantes como dar um passeio de braço dado pelo corredor, valorizar as conquistas que vão resultando da fisioterapia, incentivar a não desistir...
Por vezes, penso neste futuro que ainda me parece longinquo e que é o presente de tantos. Por vezes, fico dentro dele e penso que ainda não o quero para mim. Por enquanto, vou tentando que ele seja um presente leve e colorido para quem o está a viver. É isto que me leva, duas vezes por semana, ao lar onde dou uma das coisas que mais valorizo - o meu tempo.
Diário de uma Voluntária (03/07/2013)
 
Coisas que interessam...
Esta tarde entrei no hospital a pensar que do lado de fora estão algumas pessoas bem mais doentes do que lá dentro...
Do lado de dentro estão pessoas fisicamente doentes, algumas padecendo de males incuráveis e que todas as vezes me recebem com um sorriso e uma disponibilidade que me deixa extasiada... pessoas que lutam todos os dias por algo tão importante e abstracto co
mo a saúde, a ausência de dor, o bem-estar. São solidárias nesse objectivo e uma pequena melhoria é celebrada como se de uma grande vitoria se tratasse.
O pior é a dor. A dor física, entenda-se. Aquela que nos faz acordar a meio da noite e nos diz que temos pernas e pés que nos matam aos poucos e nos fazem chorar de desespero. Não fosse isso e até apetecia deixar o corpo dorido na cama e sair por aí só com a alma a passear...
Esta tarde, saí do hospital e trouxe alguns comigo no meu regresso a casa...
Figueira da Foz, 08 de Julho de 2013
 
Estive na tua praia este fim de semana.
Naquela onde, desde que me conheço, passavamos férias contigo.
Encontrei-te em cada lugar onde era costume estares. Mesmo naqueles que mudaram de nome e de imagem, tu estavas lá - no mercado, no café nicola (que agora é uma pizaria), na rua dos casinos, na esplanada, na praia... emocionei-me por isso, voltei a sentir os mesmos cheiros, os mesmos sons, os m
esmos ollhares.
Os lugares são as pessoas e as memórias que nos ficam no coração, não tenho dúvidas.
A única coisa que não consegui foi ouvir o som da tua voz a chamar o meu nome.
Estive contigo na nossa praia, este fim de semana... e, quando me vim embora, trouxe-te no coração.
Porque (descobri contigo) morrer é apenas deixar de ser visto!
Diário de uma Voluntária 28/06/2013

"Eu olho para si e só me lembro de duas imagens: a assistente social e a analista; a minha formação é em psicologia social e é dessas duas figuras que me lembro quando a vejo. O ar tranquilo e seguro que tem é o que me chama a atenção" dizia hoje a responsável do local onde estou também a fazer voluntariado. 
"Não sou uma coisa nem outra, respondi eu, e a tranquilidade e segurança que aparento é também aqui que a venho buscar."
De facto, a vida enriquece-nos todos os dias e ter a oportunidade de aproveitar isso e crescer, de uma forma segura e tranquila, é que é fantástico!
Obrigada, Drª Graciete, por me fazer sentir tão benvinda!
Diário de uma Voluntária (21/06/2013)
 
Pela primeira vez, senti-me culpada por estar a ajudar alguém. Senti mesmo que estava a fazer-lhe a maior patifaria do mundo!
Hoje, tive de acordar o Sr Eduardo para lhe dar o jantar. Dormia tão bem e com tanta tranquilidade que logo aí não foi fácil - pensei que, se ele fosse como eu, nunca trocaria uma boa soneca por um jantar... Enfim, teve mesmo que ser! A sopa de legumes lá foi comendo po
rque era tipo caldo e eu estava sempre a dizer-lhe "Sr Eduardo, abra a boca, por favor, só mais esta colherinha..." mas a expressão dele era tal que quase conseguia ler-lhe os pensamentos, quase me sentia corar com o que pensei que ele pensava responder-me... depois da sopa, o pudim de peixe (oh, meu Deus, o pudim de peixe!!!)... Era pudim de peixe no menu, mas muito mal conseguido, aliás, só consegui perceber que era peixe pelo inconfundível odor quando destapei o prato. Pensei que, por minha causa, por causa da minha insistência, o Sr Eduardo nunca mais conseguiria comer peixe no resto da vida ou sentir o cheiro a milhas de distancia... mas talvez não, porque enquanto eu estava distraída com os meus pensamentos culpados, ele comeu tudo e, no final, sorriu e disse que estava bom.
Está visto, a minha medida é sempre diferente da do outro, o que é mau para mim pode até ser brilhante, quando visto por outros olhos... está visto, ainda tenho muito que "crescer" e perceber que o meu mundo redondo tem mais cantos que imagino... (mas, pelo sim, pelo não, peixe é coisa que não entrará no meu menu nos próximos dias...)
Um susto de verão...

A primeira vez que tive que lidar com a morte foi na escola primaria. Uma colega da minha idade morreu depois de uma pneumonia galopante que não conseguiu vencer. Lembro-me que nós, os colegas, nos despedimos dela quase sem perceber o que estava a acontecer.
Anos depois, a morte voltou a fazer parte do meu vocabulário. O meu irmão mais pequeno, leão de signo como eu, ia deixar de estar connosc
o apesar de tudo o que se tentou fazer para o manter deste lado. A despedida só foi acelerada com a perda do meu avô, semanas depois...
Estive quase 30 anos sem a sentir por perto, a ela (à morte)... em 2006 despedi-me da avó Maria, despedida essa que ainda não consegui até hoje arrumar... morrer é, de facto, apenas deixar de ser visto!
Hoje, sem nada que o esperasse e por um "acidente" estupido com um elevador, a morte esteve novamente e por momentos ao meu lado... estava com a minha filha mais velha e senti-a muito perto - o elevador não parou no sexto piso e começou a deslizar pelo predio abaixo sem que o conseguisse parar. Escapámos sem nada, para alem do susto, eu transparente, ela mais preocupada comigo do que com o que poderia ter acontecido.
Afinal tudo ficou bem. O susto passou e a vida, que é tão boa, continua no ritmo normal - minutos depois, a morte saiu da minha frente e ficou em stand-by, à espera de um outro qualquer momento num dia desses...

Diário de uma Voluntária (29/05/2013)
 
Claro que não! A morte nunca é melhor que nada... Tudo tem remédio, a morte não! A dúvida é sempre maior quando o tempo passa e as melhoras não chegam como se espera... A D Emília está de novo pior, sem reagir à minha voz, ao barulho que a rodeia. Cheguei com o jantar, chamei-a pelo nome uma vez, outra vez mais alto, e apenas abriu os olhos quando lhe toquei na mão. Comeu a custo, quase mastiguei e engoli por ela, fiquei feliz quando consegui finalmente dar-lhe meia dúzia de colheradas... Em conversa com uma outra doente, mais tarde, comentámos o seu estado de saúde. "Não é melhor morrer", perguntou... "claro que não! A morte nunca é opção, a morte nunca é melhor que nada!" E continuei "que fazem aqui os médicos e os enfermeiros? que fazemos aqui nós, voluntários, senão trazer vida e esperança? a morte não! a morte nunca! a morte tem tempo e pode muito bem esperar..."
Diário de uma Voluntária (18/04/2013)
 
Tem fé? É crente? Acredita nas coisas mesmo sem tocar? Sim, disse-lhe eu, acredito sempre... Então acredite que vai ser muito feliz! Já sou, disse-lhe eu, sou mesmo muito feliz... esta tarde em Santa Maria, diálogo com o marido de uma doente internada. O segredo da felicidade esta na tomada de consciência e na partilha da mesma pelos que nos rodeiam...
Diário de uma Voluntária (16/04/2013)
 
Até onde é possível suportar a dor física? Até onde é possível aguentar a tristeza? E a solidão? E o isolamento? Não há terapias ou tratamentos suficientemente eficazes? A ciência, a medicina, o conhecimento esgotou-se? Desistiram de procurar soluções? Há mais de dois anos que acompanho semanalmente casos que me deixam admirada com a capacidade humana de resistência ao sofrimento e à doença. Há mais de dois anos que me sinto pequena perante a grandeza de tanta gente que tem passado na minha vida... Hoje, o meu coração ficou com a D Júlia, a dar-lhe força e alento para suportar o que nem a morfina alivia... Hoje, se eu soubesse rezar, teria certamente uma conversa com Deus...
 
Diáro de uma Voluntária (10/04/2013)
 
Há pessoas que vêem com a alma... Isto a propósito da visita de uma doente, amiga de há mais de 40 anos, de uma dedicação e um carinho imenso, que me dizia que, apesar dos 78 anos, para ela a D Júlia mantinha a mesma imagem do tempo em que se tinham conhecido e era assim que a via, quando olhava para ela, quando pensava nela. Não sei porque isto acontece, dizia, mas não consigo vê-la como uma velhinha... É simples, disse-lhe eu, isso é porque vê com o coração... Há pessoas que usam a alma, quando olham para o exterior...
Diário de uma Voluntária (12/03/2013)
 
Hoje estive uma vez mais com o Sr Alexandre. Encontrava-se no SO, o que significa que não estava melhor, infelizmente...viu-me entrar com o tabuleiro e sorriu; já adivinhava que era para ele... "andou à minha procura?" perguntou, quando o questionei se agora se tinha mudado para ali... Claro que sim, andei à sua procura na esperança de ouvir dizer que se tinha ido embora para casa e não de que não tinha resistido, que desistira... Apesar de nos terem dito para não criarmos laços, para não nos ligarmos afectivamente aos doentes, não consigo... porque todos eles vão ficando um pouco na minha vida, todos me colocaram também um pouco dentro do seu coração.
Diário de uma Voluntária (06/03/2013)
 
Até onde nos leva o amor??? Ela estava lá, ao lado dele, todos os dias, durante os dois últimos meses... Ela esteve sempre lá, ao lado dele, durante os últimos quarenta anos, fora os que namoraram. Quando eu chegava, ela abria a torneira das notícias e contava tudo o que tinha ficado guardado desde a ultima visita. Ele, deitado da cama, afagava-lhe os dedos, segurava-lhe na mão e olhava para ela com um imenso carinho... Eu, mera espectadora, pensava que "um dia ia ser também assim", o meu amor... Ele ia ter alta ontem... Ela levantou-se de manha e fez a rotina de todos os dias, antes de vir ter com ele, com a diferença de que logo mais não voltaria sozinha para casa. Ao entrar para o banho sentiu uma dor no peito; "nervos" pensou... A dor voltou mais forte e já não deu para a ignorar... Hoje, quando cheguei para a visita, a única noticia que tinha à minha espera era que ela estava também internada no mesmo hospital. Tinha tido um enfarte provocado por tanta preocupação e cansaço. Hoje, antes de sair, subi mais dois pisos e fui visitá-lá, dar-lhe algum alento e coragem. Ele já lá tinha sito levado por alguém, para a ver... Vim embora, a pensar "até onde nos leva o amor???"...
Diário de uma Voluntária (01/03/2013)
 
Há lágrimas que valem mais que mil sorrisos... Hoje foi assim, fui ajudar ao jantar um senhor com cerca de oitenta anos que tinha de estar imóvel por ter feito um exame medico. Comeu tudo com relativo apetite conversando comigo, perguntando se não estava cansada de estar ali em pé, tentando facilitar-me o trabalho segurando na colher. Disse-me que gostava de tudo, que foi sempre"boa boca"... a meio da sopa já era solidário comigo na minha antipatia por lampreia e, um pouco mais adiante, também dispensava favas... O Sr Alexandre (assim se chamava) fez-me companhia enquanto jantou... No final, quando lhe perguntei se precisava de mais alguma coisa, se tinha ficado bem, segurou na minha mão e disse "que Deus lhe pague!" e, olhando nos meus olhos, começou a chorar... Um dia, quem sabe, lembrar-me-ei desta história com outros personagens, em outros locais, com as mesmas lágrimas... (por vezes a vida tem mesmo sabor a sal...)
Diário de uma Voluntária (31/01/2013)
 
Espreitei pela porta e perguntei se podia entrar... Lá dentro, deitado na cama, um velhote respondeu-me que sim e chamou-me "Sra. Dra". Expliquei-lhe que não era médica, que era voluntária, que usava bata branca porque tinha de ser, que o meu nome era Graça... Sorriu. A partir dai questionou-me sobre tudo o que acontece lá fora, o tempo, o trânsito, os cheiros, as pessoas e mais outras coisas que já esqueci. Entre uma e outra colherada de sopa que lhe dava, lá ia respondendo, ao mesmo tempo que segurava uma vontade imensa de lhe dizer "venha comigo até lá fora dar um passeio..." E ele iria, tenho a certeza, não fosse a o corpo a trai-lo pela doença e pela falta das pernas que já não tinha, faz algum tempo...
Diário de uma Voluntária (04/09/2012)
 
Desde há um ano e meio, tenho vindo a aprender o que é "ver" com os olhos da alma... hoje, uma vez mais, durante o meu serviço de voluntariado, um doente invisual disse-me que ajudava os outros, apesar da sua cegueira... inclusive, ofereceu-me um cartão onde refere que faz bonecos para venda. E que vai a escolas mostrá-los e falar com os miúdos sobre os riscos de doenças como a diabetes, que o cegou. E que vive sozinho e não se queixa porque "há sempre quem esteja pior". E que não somos só nós, os voluntários, que fazemos bem aos outros. E que todos merecemos viver bem. E, para rematar, pergunta-me se eu tenho um bom companheiro que me ame porque "bonita assim, eu só merecia ser feliz!!!" Para além de ver com os olhos da alma, ele consegue ver através das almas de quem circula ao seu redor... (eu é que não consegui ver mais nada, por causa das lágrimas que teimavam em me cegar...)
Diário de uma Voluntária ( 20/06/2012)
 
ontem dizia-me alguém
- desde que ceguei, já consigo fazer algumas coisas sozinho...
eu respondi
- se eu fechar os olhos, apenas, não consigo fazer nada...
(como somos pequenos perante os outros...)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O meu horizonte é largo e vai muito para além do que os meus olhos veem. Transpõe muros, paredes, portões. Diria mesmo que transpõe montanhas, não fosse o risco de parecer megalómana. Mas, de facto, o meu horizonte vai muito para além das montanhas que existem à minha volta. E das que não existem e que eu, em alguns dias, imagino.
Nesse horizonte está um caminho que eu percorro todos os dias com a
minha realidade, as minhas memórias, os meus desejos. Que umas vezes é fácil, outras nem por isso, mas que sempre encaro com a serenidade de quem se sente abençoada, apesar de tudo.
Todos os dias são dias de agradecer pela saúde, pela família, pelos amigos, pelo trabalho (que desejo) e pela liberdade. Não encaro o amanhã com medo, apesar das adversidades que estão por perto e que, às vezes, tomam a forma de paredes.
O meu horizonte vai muito para além delas...
Sei que é uma tarefa árdua, esta de continuar a acreditar e não desistir, mas a minha teimosia é ainda mais forte! Por elas, por ele, por mim.
"Mãe, a forma como tu estás a reagir a tudo isto está a ser um exemplo para mim", disse-me a minha filha mais nova no dia em que fui confrontada com a perda do meu trabalho.
É verdade, no meu horizonte não há espaço para o desalento. Ainda...

Desculpa...
 
Sempre achei que pedir desculpa é uma forma de humildade. Reconhecer que errámos e que magoámos o outro e procurar remediar a nossa falta, é uma prova de maturidade. Significa que o espaço do outro conta e merece o nosso respeito. Que sabemos até onde vão os nossos limites. Que conseguimos sair de nós e, do lado de fora, ver onde estivemos mal.
Entre pais e filhos, entre amantes, mesmo entre amigos, a palavra desculpa fica, por vezes, presa na garganta e não sai. Por ignorância? Por orgulho? Ela aproxima. Reconforta. Pacifica. Nada como uma conversa serena e verdadeira para sossegar um coração. Deixar passar tempo sobre uma ferida sem a tratar, apenas fará com que alastre como uma erva daninha num canteiro.
Tenho para mim que quem ama cuida, protege, defende. Não precisa de se desculpar porque não magoa, não faz sofrer.
Tenho para mim que amar é nunca ter de pedir desculpa...